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História

Os irmãos Kirke e a primeira invasão britânica à Québec

Jonas Moura

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Champlain em Québec - Imagem gerada por Inteligência Artificial
Champlain em Québec e a chegada dos irmãos Kirke - Imagem gerada por Inteligência Artificial.

Descubra a história detalhada da fundação de Québec por Samuel de Champlain em 1608 e os conflitos posteriores com os irmãos Kirke.

Em 3 de julho de 1608, oficialmente, o navegador e explorador francês Samuel de Champlain fundou a cidade de Québec. Após algumas viagens ao território da Nova França, Champlain desembarcou na encosta do Cap Diamant e batizou o local com o nome de Québec, o qual já era usado pelos povos locais, os Montagnais, e que significa “lugar onde o rio se estreita”. A partir de então, Champlain se aliou a algumas tribos, ergueu sua residência e passou a explorar as terras que, hoje, são parte da extensão territorial canadense.

“Enquanto procurava um lugar para me estabelecer, não consegui encontrar nenhum local mais adequado do que a ponta de Québec,” – Samuel de Champlain, L’Encyclopédie Canadienne.

De acordo com artigos históricos do Canada History, ele liderou expedições e fortaleceu a relação com as nações indígenas que já mantinham uma aproximação comercial com os franceses. Entre elas, os Algonquin, Etchemin, Micmac, além dos Montagnais. Assim, Samuel de Champlain conseguiu garantir o acesso às melhores peles comercializadas na localidade, bem como obteve o conhecimento sobre os inúmeros cursos aquaviários que facilitavam a movimentação dos exploradores e o transporte dos insumos europeus por longas distâncias.

Após alguns anos comandando e representando a coroa na nova joia francesa e inserido em um contexto de disputa geopolítica com os britânicos, Samuel de Champlain, pressionado e enfraquecido pelas investidas e ataques capitaneados pelos irmãos Kirke, acabou sendo obrigado a entregar Québec aos ingleses em 19 de julho de 1629. Os irmãos David, Louis e Thomas Kirke eram corsários financiados oficialmente pela Inglaterra, filhos de um comerciante inglês com ascendência francesa protestante (huguenote). Com autorização do rei inglês Charles I, eles tomaram Québec com o objetivo de controlar suas terras e encerrar as linhas de suprimentos oriundas da França. Na ocasião, Samuel de Champlain foi enviado à Inglaterra como prisioneiro, permanecendo em prisão domiciliar em Londres até 1632. Enquanto isso, os irmãos Kirke assumiram o comando de Québec.

Cabe ressaltar que o domínio dos britânicos na região ocorreu gradativamente. Antes da tomada definitiva, os irmãos Kirke já haviam realizado algumas investidas contra os assentamentos franceses. Em julho de 1628, por exemplo, um primeiro grande comboio de navios franceses foi interceptado pelos corsários, deixando Québec vulnerável e sem suprimentos. No episódio, os invasores tomaram o assentamento de Tadoussac e, disfarçados como integrantes da Companhia dos Cem Associados, destruíram moradias locais, abateram o gado e fizeram prisioneiros.

Irmãos Kirke aceitando a rendição de Samuel de Champlain em 20 de julho de 1629. By prior to 1911, OILETTE, PRINTED IN ENGLAND AFTER THE BLACK AND WHITE DRAWING BY R. CATON WOODVILLE. Listed as EMPIRE INCIDENTS in 1908/1909 & 1911/1912 Postcard Catalogue.

Em seguida, Champlain recebeu uma carta dos irmãos Kirke informando que eles pretendiam tomar a Nova França. Em resposta, o líder francês de Québec avisou que teria comida suficiente para enfrentar as restrições impostas pela interceptação dos corsários e que também estaria suficientemente armado para enfrentá-los, caso fosse necessário. Porém, a afirmação não passava de um blefe. Segundo o historiador Éric Bédard, os irmãos Kirke sabiam do blefe. Mas eles “preferiam que os franceses se rendessem por conta própria” (Histoire de Québec pour les Nuls, p. 33). A realidade era que, com o passar dos dias, Champlain e seus homens estavam mais suscetíveis às investidas dos ingleses. Cada pequena porção de comida era contada para que ninguém passasse fome. Mas não é que os Kirke caíram na história e saíram da região de Québec?

Como alegria de pobre dura pouco, no verão do ano seguinte, pouco antes da invasão final, um grupo de navios enviados da França por solicitação de Champlain, carregados com suprimentos e reforços essenciais para manter Québec, foi interceptado pelos irmãos Kirke. Os que estavam nessa frota “abriram o bico” e relataram o estado calamitoso que se encontrava Québec. Esse fato foi determinante para minar as condições de resistência de Champlain e culminou com sua rendição. Champlain bem que tentou ludibriar os ingleses novamente, mas desta vez, não deu certo.

A tomada de Québec pelos britânicos ainda significou um violento revés nas pretensões coloniais da França. Além da prisão de seu líder Samuel de Champlain, os franceses também precisaram lidar com o fracasso da administração britânica, que não soube gerir as terras recém-capturadas.

Em 1632, após a assinatura do Tratado de Saint-Germain-en-Laye, França e Grã-Bretanha decidiram encerrar oficialmente as hostilidades que envolviam as terras da América do Norte. Assim, Québec voltou formalmente à posse francesa, e Champlain reassumiu seu posto de líder da Nova França.

Um pequeno conflito, um grande legado

É inegável que a invasão dos irmãos Kirke revelou as muitas fragilidades do domínio da Coroa Francesa sobre as terras na América do Norte. A partir daí, foi necessário que os franceses revissem suas linhas de suprimento pelo oceano Atlântico, assim como a autonomia dos seus assentamentos para enfrentar as tropas inimigas que, constantemente, ameaçavam o domínio da região. O fato também trouxe à tona a influência das ações promovidas pelos corsários e as implicações dos pequenos conflitos nos planos das potências europeias para o Novo Mundo.

A invasão de Québec pelos irmãos Kirke ainda expôs a vulnerabilidade das primeiras colônias europeias no território norte-americano. Na época, esses assentamentos eram visivelmente impactados por interesses piratas e pelos conflitos internacionais. Além disso, suas posições geográficas, marcadas pela longa distância das sedes das coroas Britânica e Francesa, favoreciam o isolamento local.

É importante relembrar a relevância estratégica de Québec na disputa territorial entre França e Grã-Bretanha. O lugar era considerado um dos principais acessos para a região central do novo continente, tornando-se uma peça-chave das disputas entre as duas grandes potências que, posteriormente, por meio de tratados, definiriam e desenhariam as fronteiras das futuras nações que ali se desenvolveriam.

O retorno de Samuel de Champlain a Québec

Em 1632, após o Tratado de Saint-Germain-en-Laye, a Grã-Bretanha concordou em libertar Samuel de Champlain, que retornou à França. Em seguida, o homem que ajudou a erguer Québec voltou ao assentamento para retomar o desenvolvimento local. Entretanto, os impactos da invasão dos irmãos Kirke foram profundos.

Após anos de empenho pela colônia, construindo relações com os povos originários e reconhecendo a dinâmica comercial das peles, Champlain tinha um novo desafio: estabilizar os danos e restabelecer as possibilidades de desenvolvimento local. Na primavera de 1633, ele retornou a Québec para sua última viagem, pois, no Natal de 1635, Champlain faleceria na sua amada cidade.

Todavia, seu retorno garantiu a vitalidade de Québec e sua evolução ao longo dos séculos. Não à toa, por pelo menos 100 anos, os franceses estabeleceram sólidas bases no Canadá.


Fontes e Referências

Samuel de Champlain, L´Encyclopédie Canadienne, acesso em 12 de março de 2025: https://www.thecanadianencyclopedia.ca/fr/article/samuel-de-champlain

Kirke take Quebec, Canada History, acesso em 8 de março de 2025: https://canadahistory.com/sections/periods/early/England_Arrives/Kirke_takes_Quebec.html

Samuel de Champlain, Britannica, acesso em 15 de março de 2025: https://www.britannica.com/biography/Samuel-de-Champlain

Éric Bédard. L’histoire du Québec pour les Nuls, nouvelle édition. Edição de 2019.

Jonas Moura é brasileiro, nascido em Recife, Pernambuco. Formado em Comunicação Social e graduando em História, atualmente, mora na capital do Rio de Janeiro. Além de jornalista, é autor do livro “Havana Viva” e roteirista. Escreve para registrar em palavras o mundo ao seu redor.

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